domingo, 21 de dezembro de 2014

Intermediação de acordo entre EUA e Cuba consolida presença internacional de papa Francisco

A mão do Papa

Líder católico virou de ponta-cabeça as prioridades da Igreja em 19 meses de papado

20/12/2014 | 16h02
Intermediação de acordo entre EUA e Cuba consolida presença internacional de papa Francisco FILIPPO MONTEFORTE/AFP


Católico ou não, é bem provável que você admire esse papa argentino, um velhinho querido que toma chimarrão no aniversário, não se veste feito um monarca do século 18, é tolerante com gays e divorciados, luta pelos pobres, vive em um quarto modesto e, agora, deu para mediar conflitos entre países inimigos.
Barack Obama, o presidente dos Estados Unidos – um país protestante que nunca deu muita bola para papas –, disse o seguinte na quarta-feira passada, aoanunciar a histórica reaproximação com Cuba:
– Agradeço especialmente ao papa Francisco, por seu exemplo moral, mostrando ao mundo como deveria ser, em vez de simplesmente se conformar com o mundo como é.
Conquista da opinião pública
Francisco é um ídolo global. Em 19 meses de papado, virou de ponta-cabeça as prioridades da Igreja, relegando a segundo plano preocupações protocolares e institucionais – próprias de seu antecessor, Bento XVI, um pontífice principesco e distante da massa. O foco agora é o rebanho, as pessoas, o povo que sofre. Mas há algo bem menos evidente, talvez menos puro, nessa conduta tão popular de Francisco. Algo que mora justamente em sua semelhança com o presidente dos EUA.
– São dois líderes que, em sua própria esfera, exercem influencia limitada. Obama tem minoria no Congresso americano, não consegue fazer nada se depender do parlamento. E Francisco, no Vaticano, convive com uma cúria podre e corrupta, jamais vai mudar nada se depender dela – analisa Carlos Alberto Steil, especialista em Antropologia da Religião e professor da UFRGS.

Tanto Obama quanto Francisco precisam conquistar a opinião internacional para exercer influência local. Não se trata de um pragmatismo sem escrúpulos: o Papa defende, de fato, uma reforma de valores e uma atualização de visões na Igreja Católica – só que a grande maioria dos bispos e cardeais ascendeu no pontificado de João Paulo II, um conservador que perseguiu sacerdotes da Teologia da Libertação, corrente ligada aos movimentos sociais. O professor Steil lembra que, se até o conservador Bento XVI renunciou por dificuldades de confrontar a cúria, imagine o que o sacerdócio faria com um jesuíta da periferia do mundo.
– Fora do Vaticano, Francisco constrói uma imagem de autoridade moral e ética, e não uma autoridade de poder – diz Paulo Agostinho N. Baptista, doutor em Ciências da Religião e professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Minas Gerais.
Ou seja: quando procura chefes de Estado, Francisco não se apresenta como um chefe de igreja. Não parece que sua preocupação seja resgatar o catolicismo em Cuba ou doutrinar o comportamento cristão dos americanos. Conforme Antonio Manzatto, doutor em Teologia e professor da PUC de São Paulo, o objetivo do Papa transcende a pregação religiosa, atendo-se apenas à humanização das relações entre os países:
– Isso suscita uma sensibilidade, uma capacidade de escuta por parte dos interlocutores que supera as indisposições tradicionais com líderes religiosos.
Manzatto afirma que até as vestes do Papa contribuem para o seu poder de agregação.
– Ele está tentando alinhar a Igreja a sua época: aquelas roupas medievais são ultrapassadas hoje em dia, porque você fica olhando para roupa e nem entende o que a pessoa fala. Simplificando protocolos e comportamentos, o que Francisco faz é aproximar o pontificado do mundo contemporâneo – conclui o teólogo.
Desde o Concílio Vaticano II, no início dos anos 1960, a ideia do então papa João XXIII era ampliar a força moral do Vaticano na relação com os demais Estados. O padre Paulo Sérgio Lopes Gonçalves, pós-doutor em Filosofia e professor da PUC de Campinas, diz que é exatamente o que Francisco tenta retomar:
– Ele vai à Síria, vai à Turquia, faz a mediação entre Estados Unidos e Cuba. No caso do Oriente Médio, mais do que visitar Israel e Palestina, o Papa chamou os presidentes para o Vaticano, o que é inédito. Ele ofereceu sua própria casa como um local isento para a busca de um tratado de paz.
O teólogo Antonio Manzatto lembra que é de "papa" que as crianças chamam seus pais. E Francisco é papa como há muito ninguém era.
Novos paradigmas
Consulta popularEm novembro de 2013, o Papa enviou às paróquias um questionário sobre aborto, contracepção, divórcio, adoção por gays e outros tabus. Os bispos consultaram seus fiéis e enviaram as respostas ao Vaticano.
Divorciados"As coisas precisam mudar", sinalizou o Papa sobre as restrições da Igreja aos divorciados, hoje impedidos de comungar e de serem padrinhos de crianças.
Aversão ao luxoFrancisco sempre se recusou a viver sozinho no suntuoso apartamento papal: mora na Casa de Santa Marta, hospedaria no Vaticano, com outros membros do clero. Usa cruz de ferro – não de ouro – e roupas simples.
Homossexuais"Se uma pessoa é gay e busca Deus, quem sou eu para julgá-la?", disse Franciscoem julho de 2013, frisando que os homossexuais "não podem ser discriminados".
Movimentos sociaisSem nunca ter recebido apoio oficial da Igreja, grupos de luta contra injustiças sociais ganharam reconhecimento histórico de Francisco, que se reuniu com uma centena deles em outubro passado.

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