Guilherme Balza*
Frei Betto é sempre lembrado quando o assunto é a controversa relação entre a ditadura militar e a Igreja Católica, que passava por profundas transformações enquanto o país esteve sob o jugo das Forças Armadas.
Em entrevista ao UOL, o dominicano descreve os conflitos no interior da igreja durante a ditadura e explica como se operou a mudança de lado da CNBB, que inicialmente celebrou o golpe com agradecimentos a Nossa Senhora Aparecida, mas depois se constituiu como força de resistência ao regime. O religioso revela ainda que a CIA (agência de inteligência dos Estados Unidos) financiou as Marchas da Família com Deus pela Liberdade, manifestações populares que antecederam o golpe militar.
Eis a Entrevista
UOL – O que o senhor estava fazendo em 31 de março de
1964?
Frei Betto - Na verdade o golpe foi no dia 1º. Essa
história de 31 é invenção dos milicos porque tinham vergonha do 1º de abril. O
golpe foi oficialmente no dia 1º de abril, quando Jango sai do Brasil e se
refugia no Uruguai. Eu estava participando do Congresso Latino-americano de
Estudantes em Belém, no Pará
UOL – Como o senhor recebeu a notícia?
Frei Betto - A notícia veio de maneira difusa,
confusa, de que havia movimento de tropas, que o Jango tinha passado por
Brasília, depois ido a Porto Alegre e de lá saído ao Uruguai, porque estava
deposto. O Congresso foi desfeito porque ali participavam estudantes de quase
todos os países da América Latina, muitos deles acostumados a golpes
militares.
Eles sentiram que a coisa ia endurecer. Estava hospedado na casa do
arcebispo de Belém dom Alberto Gaudêncio Ramos porque eu era dirigente da Juventude
Estudantil Católica (JEC) e da Ação Católica também. Fui pra casa de um militante da JEC
chamado Lauro Cordeiro.
E ali fiquei, de ouvido colado no rádio, tentando entender o que estava
acontecendo, e fomos tomando consciência, a partir do dia 2 ou 3 [de abril], de
que realmente havia um golpe militar, que começava uma repressão. Nós esperávamos uma reação das
forças esquerda, do PCB (Partido Comunista Brasileiro), da Ação Popular, das
Ligas Camponesas, reação que nunca veio. Praticamente os militares
assaltaram o poder sem precisar dar nenhum tiro.
UOL – Essa reação não ocorreu por quê?
Frei Betto - Não ocorreu porque era um blefe.
Realmente a esquerda não estava suficientemente organizada.
Primeiro, não acreditava que houvesse um golpe, porque havia um mito de que o Jango
detinha pleno controle das Forças Armadas. E que os generais que eram ministros
dele jamais haveriam de traí-lo. O esquema militar do Jango era um mito que se
alimentava.
Em segundo, porque a esquerda era muito
proselitista, mas não fazia um trabalho de organização popular. Não havia um
trabalho de base como houve depois da ditadura. Era uma esquerda muito mais
discursiva, ideológica, mas que não tinha uma capacidade de mobilização popular
como se imaginava que tinha ou se esperava que tivesse para reagir ao
golpe.
UOL – Naquele momento o que lhe passava pela cabeça?
Frei Betto - Meu pai já tinha vivido sob uma
ditadura, de [Getúlio] Vargas, já tinha sido preso, nos anos 30, teve que deixar
o Rio de Janeiro, onde exercia a advocacia, e voltar a Minas porque forças de
Vargas cercearam qualquer possibilidade dele de arrumar emprego. Ele me
descrevia a ditadura como uma coisa cruel, assassina, com censura, sem nenhuma
liberdade de expressão.
Comecei a esperar que a mesma coisa viesse a acontecer. E fui atingido na
pele só no dia 6 de junho de 1964, quando eu voltei ao Rio de Janeiro, onde
morava, e ali eu fui preso com a direção da JEC, da JUC (Juventude Universitária
Católica) e da Ação Católica, pelo serviço secreto da Marinha na madrugada de 5
para 6 de julho.
UOL – Nessa primeira prisão, onde o senhor ficou?
Frei Betto - Primeiro eu fui levado até o comando
da Marinha, na praça Mauá (centro do Rio), onde nós fomos torturados,
interrogados e transferidos para Ilha das Cobras (RJ),
no quartel de fuzileiros navais. Ficamos uma semana presos e depois fomos
levados de volta ao apartamento em que morávamos por conta da
CNBB, mas especificamente
por conta de d. Helder
Câmara, que era o assistente da Ação Católica, e ficamos em prisão
domiciliar mais uma semana. Depois fomos liberados sem que houvesse processo
formal.
UOL – Nesse período chegou a haver tortura?
Frei Betto - Houve tortura. Quando fomos levados
para o comando naval, houve tortura. Não nos moldes de 1969, quando fui preso de
novo, mas houve tortura, com sopapos, soco na cara, empurrão.. Não houve
pau-de-arara, choque elétrico, essas coisas.
UOL – O senhor poderia descrever qual era o clima político do país
naquele momento?
Frei Betto - Era um clima de absoluta perplexidade.
Em meados de abril de 1964, numa reunião no Rio da qual participei como membro
da direção nacional da Ação Católica, houve uma furiosa discussão
entre bispos conservadores e progressistas, tendo ganhado o setor
conservador.
E a CNBB oficialmente apoiou o golpe por ter
livrado o Brasil da ameaça comunista. O caldo de cultura do golpe já havia
sido preparado pela CIA no Brasil através do padre Patrick
Peyton, que era o pároco
de Hollywood e veio ao Brasil.
Hoje já se sabe com documentos que ele era pago pela CIA para
fazer as Marchas da Família com Deus pela Liberdade. Ele promovia grandes mobilizações nesse
sentido.
Portanto, quando veio o golpe, a igreja agradece a Nossa Senhora
Aparecida ter livrado o Brasil da ameaça comunista. Ao mesmo tempo havia aquela
ideia de que a ditadura não duraria muito tempo porque [depois do golpe] não
houve propriamente uma manifestação popular de apoio explícito.
Então se pensava que os militares não teriam respaldo da opinião pública.
Nos enganamos. A ditadura não só foi se aprimorando na sua crueldade, no seu
desrespeito aos direitos humanos, principalmente a partir de 68 com o AI-5, como
também ela durou 21 anos, o que na época ninguém esperava que
acontecesse.
UOL – Pelo o que o senhor diz, a igreja estava
dividida naquele momento. Ou os setores que eram contrários ao golpe ainda eram
minoritários?
Frei Betto - Eles eram minoritários. Os bispos
tinham uma formação tradicional. Os primeiros bispos progressistas estavam
praticamente aparecendo no cenário brasileiro, como o d. Helder [Câmara],
o d. Waldyr
Calheiros, que era bispo de Volta Redonda (RJ), o d. José Vicente
Távora, de Aracaju. Mas eram poucos.
O d. Carlos Carmelo
Mota, de São Paulo (presidente da CNBB à época), era um moderado, mais
para progressista. Era muito amigo do Juscelino [Kubistchek]. Mas o d. [Vicente] Scherer, que era arcebispo de Porto Alegre,
o d. Jaime
Câmara, que era arcebispo
do Rio, eles eram muito
conservadores e tinham muita força.
Havia também dois militantes de extrema direita no episcopado, que eram
o d. Geraldo Proença
Sigaud, de Diamantina (MG), e d. [Antônio de] Castro
Mayer, de Campos do Goytacazes (RJ), que eram patronos da TFP
(Tradição Família e Propriedade). Esses eram dois militantes ferozes do
fundamentalismo conservador na igreja. E tiveram muita atividade, muito
empenho, nessa aprovação
do golpe por parte da CNBB.
UOL – Como o Vaticano e o papa Paulo 6º se
posicionavam?
Frei Betto - O papa não se posicionou no início.
Mais tarde, o Vaticano veio a censurar a ditadura. Porque com o tempo a
repressão se estendeu também à igreja e daí criou-se não só uma divisão na
igreja, mas a própria CNBB foi se afastando da ditadura.
A partir dos anos 70 a CNBB foi praticamente a grande voz de defesa das
vítimas da ditadura. Tanto que o mais importante documento sobre os mais de 20
anos de ditadura foi produzido pelo d. Paulo Evaristo
Arns,que é o livro “Brasil Nunca Mais”,
que ele fez também com oreverendo Jaime Wright.
A igreja e a própria CNBB se tornaram, a partir do AI-5, uma voz
contra a ditadura. A
igreja mudou de posição à medida que padres, bispos e religiosos eram também
perseguidos e vitimizados pela ditadura.
O d. Adriano
Hipólito, por exemplo,
bispo de Nova Iguaçu (RJ), foi apreendido e torturado. O d. Marcelo
Carvalheira, que era assessor de d. Helder, foi preso comigo no Rio
Grande do Sul. Toda essa repressão que atingiu os bispos fez com que a igreja assumisse cada vez mais
uma posição crítica à ditadura.
Na medida em que os bispos foram se posicionando, Paulo 6º veio em
apoio, tanto que na
prisão dos dominicanos se manifestou explicitamente a nosso favor. Enviou-nos de
presente um rosário feito de contas de oliveiras de Jerusalém e um cartão
manuscrito “como um testemunho de afeição, Paulo 6º”. Tivemos um apoio explícito nos
quatro anos em que estivemos presos.
UOL – E os bispos conservadores, como ficaram após essa virada na
CNBB?
Frei Betto - Eles ficaram em minoria. Alguns foram
morrendo, outros foram aposentados por razão de idade ou de doença,mas
eles foram perdendo a hegemonia da CNBB, que passou para as mãos dos
progressistas, que eram críticos contundentes da ditadura e, portanto,
defensores dos direitos humanos. Você vê surgir uma igreja
progressista, das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), das pastorais populares,
assumindo uma posição bastante consequente, contundente, contra a ditadura
militar.
UOL – Mas também houve repressão contra as CEBs.
Frei Betto - Sempre houve. Quanto mais a igreja se
posicionava, mais havia repressão. Houve repressão sobre todos aqueles que se
opunham à ditadura.
UOL – Antes dessa virada, havia trânsito entre os militares e lideranças
da igreja?
Frei Betto - Havia. Como o caso do d. Eugênio Sales, no Rio, cuja postura até hoje, no meu
ponto de vista, não está devidamente esclarecida. Ele alega que
ajudou perseguidos, mas eram perseguidos do Uruguai, da Argentina e mesmo
assim eu pessoalmente não
conheci nenhum dos perseguidos do Cone Sul que tenham sido ajudados por
ele.
Sei que no caso dos perseguidos brasileiros, com exceção de algumas
pessoas notórias, como intelectuais e jornalistas, ele se omitiu
inteiramente. Pelo menos
foi assim nos casos dos dominicanos.
UOL – Havia delatores dentro da igreja?
Frei Betto - Isso sempre aconteceu. Não foi uma
coisa maciça, mas aconteceu. Eu mesmo fui interrogado no Dops (Departamento de
Ordem Política e Social) de São Paulo pelo delegado Alcides Cintra Bueno,
que era conhecido como delegado oculto.
Ele tinha delatores dentro da igreja. Tinha padres, freiras, frades, pessoas
que achavam, sei lá, em sã consciência que estavam ajudando a livrar o Brasil do
comunismo, a purificar a igreja. Havia sim delatores dentro da igreja, como há
em qualquer instituição, dentro do jornalismo, no teatro, em sindicatos. Isso
sempre houve.
UOL – Como avalia o impacto do golpe na igreja?
Frei Betto - Eu acho que o impacto foi muito
positivo. Porque levou a igreja a se conscientizar do que é uma ditadura e do papel dela em defesa das
vítimas, dos direitos humanos, dos mais pobres. São males que vem para
o bem. Ou seja, aditadura acabou produzindo uma grande renovação da
igreja no Brasil, renovação que depois se perde bastante com o
pontificado do João Paulo 2º.
UOL – Esta renovação interrompida se recupera hoje?
Frei Betto - Agora com o papa Francisco (risos) nós
estamos virando a página. Ainda a maioria dos bispos e
padres que temos é resultado dos pontificados de João Paulo 2º e Bento
16. Então não dá
para ser otimista imediatamente, mas, a médio prazo, sim.
Tenho impressão que a Igreja Católica vai passar por uma grande mudança,
com a volta das CEBs e daquela igreja progressista, que, diga-se de passagem,
enchia os templos da Igreja Católica, não havia essa evasão que há
hoje. A evasão coincide
com a repressão às CEBs, às pastorais populares. Tenho a impressão que
vamos voltar a um novo alento aí na Igreja Católica com o papa
Francisco.
UOL – Como a igreja vem se comportando nesse processo de rediscussão da
ditadura, com as Comissões da Verdade?
Frei Betto - Vem se comportando muito bem,
inclusive dando todo apoio, assessoria,
documentação. Aliás, toda a documentação mais importante que existe
sobre a ditadura foi feita pelo trabalho da igreja, do d. Paulo Evaristo Arns e
do reverendo Wright. Eles
que fizeram essa documentação, que foi microfilmada, levada para Suíça,
recentemente retornou e hoje está à disposição dos pesquisadores em São
Paulo.
O Outro lado
Procurada pela reportagem do UOL, a Embaixada dos
EUA no Brasil informou não
ter “como fornecer nenhuma análise histórica desse período”.
A reportagem do UOL entrou em contato por
telefone com a assessoria de imprensa da CNBB na última terça-feira (18) para
que comentasse as afirmações feitas por Frei Betto. Até o fechamento do texto,
às 20h desta quarta-feira (19), a entidade não havia respondido as perguntas
enviadas por email.
20/03/2014
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